Por Filipe Larêdo
Há algumas décadas, as pessoas (especialmente as que gostavam de
escutar músicas em suas vitrolas ou toca-discos) foram convencidas pelo mercado
fonográfico a abandonar seus LP’s para comprarem o que havia de mais novo na
tecnologia: os CD’s.
O que se viu então foi um descarte em massa de antigas coleções de
discos de vinil, já que a forma revolucionária de escutar música ia dominar o
mercado sonoro. Por todos os cantos, pessoas decepcionadas com o arcaísmo e
empolgadas com a boa nova que lhes prometia maravilhas eternas descartavam seus
bolachões a preço de banana ou até mesmo de graça.
Mas, como podemos constatar hoje, a
promessa das grandes produtoras e gravadoras deu certo por um tempo, mas aos
poucos foi se esvaziando até alcançar o cenário de compartilhamento gratuito de
música via internet.
Apesar de ter dado essa pequena volta no
começo do texto, cujo título aponta para o fetichismo na literatura, ainda
quero mostrar um outro personagem cultural que também recebeu seu baque no
decorrer da história recente: os filmes.
Logo após o começo da crise no mercado
fonográfico, a vítima da vez seriam as fitas de videocassete, que, para
resumir, também foram substituídas (primeiro pelos VCD’s e, depois, em
definitivo, pelos DVD’s e discos de Bluray). Porém, assim como as vendas
de CD’s, essa nova mídia para vídeos também sofreu graves abalos nos últimos
anos. Os DVD’s seguiram o mesmo curso quando filmes passaram a ser adquiridos
de graça na internet.
E a nova especulação digital é o objeto
que vem insistindo em permanecer fiel ao seu formato tradicional: o livro.
O mercado está capitaneado por grandes
corporações de produtores de equipamentos eletrônicos e, apesar da forte
pressão exercida para que as pessoas troquem definitivamente o livro impresso pelo
virtual, os usuários — que normalmente são os consumidores finais conhecidos
carinhosamente pela alcunha de “leitores” — parecem não querer se render com
tanta facilidade a esse capricho corporativo (leia-se “fatia de
mercado”) e mantêm seu apego a diversas características que compõem o
livro tradicional.
E por qual motivo isso acontece?
Leitores de livros já estão “escaldados”
Por questões de consumo de mídia, existe
uma escala de facilidade entre as que citei nos parágrafos anteriores.
Com o tempo médio que varia entre dois e
três minutos, a música pode ser considerada como a “estrutura” de mais fácil
consumo. Além disso, para ser escutada, ela não precisa da total atenção da
pessoa, que pode fazê-lo ao dirigir, conversar, dançar e até jogar
futebol. Então, se a música tem esse tempo relativamente curto e o
descompromisso de dedicação, um disco inteiro pode ser escutado em um intervalo
de uma ou duas horas.
Logo em seguida,
aparece o audiovisual, mais comumente representado pelo filme. Com praticamente
a mesma média de duração de um disco, ele também não demanda muito tempo do
consumidor. Porém, para a experiência ser completa, é necessário mais
concentração, de modo que o consumo seja sequencial.
Por último aparece o
“agressivo” e “egoísta” livro. O nosso tão querido livro só quer a atenção para
ele e, para muitos usuários, até pequenas distrações são desastrosas para o
entendimento do assunto tratado. Para se ler um livro, são necessárias inúmeras
condições, mas a principal delas é tempo de
concentração e contemplação.
Ao observar dessa maneira, parece até natural que a grande
revolução propagandeada pelas corporações tenha começado pela música e queira
terminar lucrando com a disponibilidade de livros eletrônicos. Entretanto, os
consumidores de livros, mesmo que subconscientemente, já estavam escaldados,
pois passaram pela mesma experiência quando se desfizeram de suas antigas
coleções de vinil para comprar CD’s.
Por isso, não foram alvos tão fáceis de convencimento. E tudo por
que ninguém contava com um detalhe muito importante: o fetichismo da
literatura.
O
livro como fetiche
“Fetiche” tem origem do latim facticius, cujo
significado remete a “articifial, fictício”. Suas variações se encontram na
mesma base da palavra “feitiço”. Ele seria, então, um objeto no qual se
atribuem poderes sobrenaturais ou mágicos, normalmente carregados de energias
espirituais e/ou totêmicas.
Apesar de alguns pensadores terem formulado suas teorias
fundamentando o fetiche sob a visão negativa de dominação, o aspecto que quero
abordar aqui independe de valores morais, considerando apenas a “aura”
(negativa ou positiva) que o livro carrega consigo.
Uma prática bastante recorrente dentre usuários literários é citar
o crescimento exponencial de suas pilhas de leituras pendentes. Isso acontece
porque, muitas vezes, a distância entre livros comprados e livros efetivamente
lidos é grande. E são diversos os motivos que fazem as pessoas quererem ter
livros em suas casas, mesmo não tendo tempo para lê-los.
Obs: a foto acima saiu da publicação da revista Casa Vogue “10 casas ideais para amantes de livros“.
Um deles pode ser o legítimo interesse na leitura, que muitas vezes
encontra obstáculos e impede o indivíduo de completar ou até iniciar o consumo;
a pessoa compra o livro e, por algum contratempo, se vê impedida de ler.
Outro motivo pode ser o fato de que, quem tem livros em casa,
parece ser mais inteligente. Nesse caso, a pessoa nem precisa ler, pois seu
real interesse é mostrar que é culta por meio de sua estante abundante de
livros. Então ela compra inúmeras coleções e títulos que enriquecem o seu
arsenal e, quando uma visita aparece em casa, o proprietário tem orgulho de
mostrar.
Muitos outros motivos podem ser citados, porém a aura fetichista do
livro quase sempre é a condutora do comportamento. Mesmo aqueles que não têm o
hábito de comprar muitos livros já tiveram essa experiência.
Quer um exemplo? Livros religiosos.
Certa vez, conversando com um amigo editor (que foi responsável
pela produção de um livro religioso que se tornou um campeão de vendas alguns
anos atrás), fiz a seguinte pergunta: “cara, que legal esse livro ter vendido
uma quantidade tão grande (milhões) de exemplares, né? Assim teremos um aumento
bem grande na quantidade de livros lidos pelos brasileiros”.
Ele me respondeu: “você acha que todas as pessoas que compraram o
livro vão ler? Aí é que você se engana”.
Foi então que ele passou a me explicar que dificilmente uma pessoa
comprava apenas um livro em uma tarde de autógrafos. Normalmente comprava entre
cinco e dez livros. E por que faziam isso? Porque, na verdade, não estavam lá
apenas por causa da leitura, mas sim para conseguir um autógrafo do autor — que
era uma famosa personalidade religiosa — e, assim, ou poder colocar o livro em
um lugar especial da casa (quase como uma relíquia sagrada) ou dar de presente
para um parente enfermo com o intuito de curá-lo.
Foi a partir dessa conversa que passei a pensar cada vez mais
profundamente nesse aspecto fetichista do livro. Para uma parcela daqueles
milhões de compradores do livro, o potencial dele não era necessariamente
literário. Era mágico. O livro tinha o poder de abençoar a casa e curar. Era
como se o religioso autor depositasse energias espirituais no objeto,
tornando-o um fetiche totêmico.
Dono de um poder único, o livro é uma plataforma que encanta seus
usuários, principalmente depois que adotou o formato que hoje conhecemos. Esse
modelo, unido ao desenvolvimento tecnológico, permitiu que as pessoas se
apaixonassem pelo cheiro do livro, por uma capa maravilhosa, por um acabamento
gráfico especial etc.
Cada um desses
pontos contribui para que as pessoas se apeguem ao objeto como se ele tivesse
vida, como se realmente tivesse uma aura mágica.
Talvez, essa seja uma das razões para explicar como toda a pressão
das grandes corporações para substituirmos nossos livros de papel por livros
eletrônicos não esteja dando resultados tão rápidos e eficazes quanto como
aconteceu com os vinis algumas décadas atrás.
Você, por exemplo, como trata os seus livros? Como consome
literatura hoje em dia e, mais importante, há algum livro na sua casa com essa
“aura especial”, essa coisa de gostar ou querer expôr para outras pessoas?
Fonte: http://papodehomem.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário