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Quando nos pedem para indicar um número muito
limitado de livros importantes para conhecer o Brasil, oscilamos entre dois
extremos possíveis: de um lado, tentar uma lista dos melhores, os que no
consenso geral se situam acima dos demais; de outro lado, indicar os que nos
agradam e, por isso, dependem sobretudo do nosso arbítrio e das nossas
limitações. Ficarei mais perto da segunda hipótese.
Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo
no que se refere à simples informação, depende de muita coisa além do valor que
ele possa ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso
conhecimento, da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e pouco
sabe, um compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para quem sabe
muito, um livro importante não passa de chuva no molhado. Além disso, há as
afinidades profundas, que nos fazem afinar com certo autor (e portanto
aproveitá-lo ao máximo) e não com outro, independente da valia de ambos.
Por isso, é sempre complicado propor listas
reduzidas de leituras fundamentais. Na elaboração da que vou sugerir (a pedido)
adotei um critério simples: já que é impossível enumerar todos os livros
importantes no caso, e já que as avaliações variam muito, indicarei alguns que
abordam pontos a meu ver fundamentais, segundo o meu limitado ângulo de visão.
Imagino que esses pontos fundamentais correspondem à curiosidade de um jovem
que pretende adquirir boa informação a fim de poder fazer reflexões
pertinentes, mas sabendo que se trata de amostra e que, portanto, muita coisa
boa fica de fora.
São fundamentais tópicos como os seguintes: os
europeus que fundaram o Brasil; os povos que encontraram aqui; os escravos
importados sobre os quais recaiu o peso maior do trabalho; o tipo de sociedade
que se organizou nos séculos de formação; a natureza da independência que nos
separou da metrópole; o funcionamento do regime estabelecido pela
independência; o isolamento de muitas populações, geralmente mestiças; o
funcionamento da oligarquia republicana; a natureza da burguesia que domina o
país. É claro que estes tópicos não esgotam a matéria, e basta enunciar um
deles para ver surgirem ao seu lado muitos outros. Mas penso que, tomados no
conjunto, servem para dar uma ideia básica.
Entre parênteses: desobedeço o limite de dez obras
que me foi proposto para incluir de contrabando mais uma, porque acho
indispensável uma introdução geral, que não se concentre em nenhum dos tópicos
enumerados acima, mas abranja em síntese todos eles, ou quase. E como
introdução geral não vejo nenhum melhor do que O povo brasileiro (1995), de
Darcy Ribeiro, livro trepidante, cheio de ideias originais, que esclarece num
estilo movimentado e atraente o objetivo expresso no subtítulo: “A formação e o
sentido do Brasil”.
Quanto à caracterização do português, parece-me
adequado o clássico Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda,
análise inspirada e profunda do que se poderia chamar a natureza do brasileiro
e da sociedade brasileira a partir da herança portuguesa, indo desde o traçado
das cidades e a atitude em face do trabalho até a organização política e o modo
de ser. Nele, temos um estudo de transfusão social e cultural, mostrando como o
colonizador esteve presente em nosso destino e não esquecendo a transformação
que fez do Brasil contemporâneo uma realidade não mais luso-brasileira, mas,
como diz ele, “americana”.
Em relação às populações autóctones, ponho de lado
qualquer clássico para indicar uma obra recente que me parece exemplar como
concepção e execução: História dos índios do Brasil (1992), organizada por
Manuela Carneiro da Cunha e redigida por numerosos especialistas, que nos
iniciam no passado remoto por meio da arqueologia, discriminam os grupos
linguísticos, mostram o índio ao longo da sua história e em nossos dias,
resultando uma introdução sólida e abrangente.
Seria bom se houvesse obra semelhante sobre o
negro, e espero que ela apareça quanto antes. Os estudos específicos sobre ele
começaram pela etnografia e o folclore, o que é importante, mas limitado.
Surgiram depois estudos de valor sobre a escravidão e seus vários aspectos, e
só mais recentemente se vem destacando algo essencial: o estudo do negro como
agente ativo do processo histórico, inclusive do ângulo da resistência e da
rebeldia, ignorado quase sempre pela historiografia tradicional. Nesse tópico
resisto à tentação de indicar o clássico O abolicionismo (1883), de Joaquim
Nabuco, e deixo de lado alguns estudos contemporâneos, para ficar com a síntese
penetrante e clara de Kátia de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil (1982),
publicado originariamente em francês. Feito para público estrangeiro, é uma
excelente visão geral desprovida de aparato erudito, que começa pela raiz
africana, passa à escravização e ao tráfico para terminar pelas reações do
escravo, desde as tentativas de alforria até a fuga e a rebelião. Naturalmente
valeria a pena acrescentar estudos mais especializados, como A escravidão
africana no Brasil (1949), de Maurício Goulart ou A integração do negro na
sociedade de classes (1964), de Florestan Fernandes, que estuda em profundidade
a exclusão social e econômica do antigo escravo depois da Abolição, o que
constitui um dos maiores dramas da história brasileira e um fator permanente de
desequilíbrio em nossa sociedade.
Esses três elementos formadores (português, índio,
negro) aparecem inter-relacionados em obras que abordam o tópico seguinte, isto
é, quais foram as características da sociedade que eles constituíram no Brasil,
sob a liderança absoluta do português. A primeira que indicarei é Casa grande e
senzala (1933), de Gilberto Freyre. O tempo passou (quase setenta anos), as
críticas se acumularam, as pesquisas se renovaram e este livro continua vivíssimo,
com os seus golpes de gênio e a sua escrita admirável – livre, sem vínculos
acadêmicos, inspirada como a de um romance de alto voo. Verdadeiro
acontecimento na história da cultura brasileira, ele veio revolucionar a visão
predominante, completando a noção de raça (que vinha norteando até então os
estudos sobre a nossa sociedade) pela de cultura; mostrando o papel do negro no
tecido mais íntimo da vida familiar e do caráter do brasileiro; dissecando o
relacionamento das três raças e dando ao fato da mestiçagem uma significação
inédita. Cheio de pontos de vista originais, sugeriu entre outras coisas que o
Brasil é uma espécie de prefiguração do mundo futuro, que será marcado pela
fusão inevitável de raças e culturas.
Sobre o mesmo tópico (a sociedade colonial
fundadora) é preciso ler também Formação do Brasil contemporâneo, Colônia
(1942), de Caio Prado Júnior, que focaliza a realidade de um ângulo mais
econômico do que cultural. É admirável, neste outro clássico, o estudo da
expansão demográfica que foi configurando o perfil do território – estudo feito
com percepção de geógrafo, que serve de base física para a análise das
atividades econômicas (regidas pelo fornecimento de gêneros requeridos pela
Europa), sobre as quais Caio Prado Júnior engasta a organização política e
social, com articulação muito coerente, que privilegia a dimensão material.
Caracterizada a sociedade colonial, o tema imediato
é a independência política, que leva a pensar em dois livros de Oliveira Lima:
D. João VI no Brasil (1909) e O movimento da Independência (1922), sendo que o
primeiro é das maiores obras da nossa historiografia. No entanto, prefiro
indicar um outro, aparentemente fora do assunto: A América Latina, Males de
origem (1905), de Manuel Bonfim. Nele a independência é de fato o eixo, porque,
depois de analisar a brutalidade das classes dominantes, parasitas do trabalho
escravo, mostra como elas promoveram a separação política para conservar as
coisas como eram e prolongar o seu domínio. Daí (é a maior contribuição do livro)
decorre o conservadorismo, marca da política e do pensamento brasileiro, que se
multiplica insidiosamente de várias formas e impede a marcha da justiça social.
Manuel Bonfim não tinha a envergadura de Oliveira Lima, monarquista e
conservador, mas tinha pendores socialistas que lhe permitiram desmascarar o
panorama da desigualdade e da opressão no Brasil (e em toda a América Latina).
Instalada a monarquia pelos conservadores,
desdobra-se o período imperial, que faz pensar no grande clássico de Joaquim Nabuco:
Um estadista do Império (1897). No entanto, este livro gira demais em torno de
um só personagem, o pai do autor, de maneira que prefiro indicar outro que tem
inclusive a vantagem de traçar o caminho que levou à mudança de regime: Do
Império à República (1972), de Sérgio Buarque de Holanda, volume que faz parte
da História geral da civilização brasileira, dirigida por ele. Abrangendo a
fase 1868-1889, expõe o funcionamento da administração e da vida política, com
os dilemas do poder e a natureza peculiar do parlamentarismo brasileiro, regido
pela figura-chave de Pedro II.
A seguir, abre-se ante o leitor o período
republicano, que tem sido estudado sob diversos aspectos, tornando mais difícil
a escolha restrita. Mas penso que três livros são importantes no caso,
inclusive como ponto de partida para alargar as leituras.
Um tópico de grande relevo é o isolamento
geográfico e cultural que segregava boa parte das populações sertanejas,
separando-as da civilização urbana ao ponto de se poder falar em “dois Brasis”,
quase alheios um ao outro. As consequências podiam ser dramáticas,
traduzindo-se em exclusão econômico-social, com agravamento da miséria, podendo
gerar a violência e o conflito. O estudo dessa situação lamentável foi feito a
propósito do extermínio do arraial de Canudos por Euclides da Cunha n’Os
sertões (1902), livro que se impôs desde a publicação e revelou ao homem das
cidades um Brasil desconhecido, que Euclides tornou presente à consciência do
leitor graças à ênfase do seu estilo e à imaginação ardente com que acentuou os
traços da realidade, lendo-a, por assim dizer, na craveira da tragédia.
Misturando observação e indignação social, ele deu um exemplo duradouro de
estudo que não evita as avaliações morais e abre caminho para as reivindicações
políticas.
Da Proclamação da República até 1930 nas zonas
adiantadas, e praticamente até hoje em algumas mais distantes, reinou a
oligarquia dos proprietários rurais, assentada sobre a manipulação da política
municipal de acordo com as diretrizes de um governo feito para atender aos seus
interesses. A velha hipertrofia da ordem privada, de origem colonial, pesava
sobre a esfera do interesse coletivo, definindo uma sociedade de privilégio e
favor que tinha expressão nítida na atuação dos chefes políticos locais, os
“coronéis”. Um livro que se recomenda por estudar esse estado de coisas
(inclusive analisando o lado positivo da atuação dos líderes municipais, à luz
do que era possível no estado do país) é Coronelismo, enxada e voto (1949), de
Vitor Nunes Leal, análise e interpretação muito segura dos mecanismos políticos
da chamada República Velha (1889-1930).
O último tópico é decisivo para nós, hoje em dia,
porque se refere à modernização do Brasil, mediante a transferência de
liderança da oligarquia de base rural para a burguesia de base industrial, o
que corresponde à industrialização e tem como eixo a Revolução de 1930. A
partir desta viu-se o operariado assumir a iniciativa política em ritmo cada
vez mais intenso (embora tutelado em grande parte pelo governo) e o empresário
vir a primeiro plano, mas de modo especial, porque a sua ação se misturou à
mentalidade e às práticas da oligarquia. A bibliografia a respeito é vasta e
engloba o problema do populismo como mecanismo de ajustamento entre arcaísmo e
modernidade. Mas já que é preciso fazer uma escolha, opto pelo livro
fundamental de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (1974). É
uma obra de escrita densa e raciocínio cerrado, construída sobre o cruzamento
da dimensão histórica com os tipos sociais, para caracterizar uma nova
modalidade de liderança econômica e política.
Chegando aqui, verifico que essas sugestões sofrem
a limitação das minhas limitações. E verifico, sobretudo, a ausência grave de
um tópico: o imigrante. De fato, dei atenção aos três elementos formadores
(português, índio, negro), mas não mencionei esse grande elemento
transformador, responsável em grande parte pela inflexão que Sérgio Buarque de
Holanda denominou “americana” da nossa história contemporânea. Mas não conheço
obra geral sobre o assunto, se é que existe, e não as há sobre todos os
contingentes. Seria possível mencionar, quanto a dois deles, A aculturação dos
alemães no Brasil (1946), de Emílio Willems; Italianos no Brasil (1959), de
Franco Cenni, ou Do outro lado do Atlântico (1989), de Ângelo Trento – mas isso
ultrapassaria o limite que me foi dado.
No fim de tudo, fica o remorso, não apenas por ter
excluído entre os autores do passado Oliveira Viana, Alcântara Machado,
Fernando de Azevedo, Nestor Duarte e outros, mas também por não ter podido
mencionar gente mais nova, como Raimundo Faoro, Celso Furtado, Fernando Novais,
José Murilo de Carvalho, Evaldo Cabral de Melo etc. etc. etc. etc.
Por Antonio Candido, sociólogo, crítico literário e
ensaísta.
Fonte: Jornal de Hoje
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