terça-feira, 6 de agosto de 2013

Leite Derramado – Chico Buarque



Leite derramado é aquele tipo de livro que nós folheamos na prateleira da livraria por ser de Chico, mas acabamos decidindo não levar. Pelo menos foi o que aconteceu comigo. Até que um dia peguei um exemplar emprestado de uma colega da faculdade. Não preciso dizer que me arrependi amargamente de não ter dado uma chance ao Chico naquele outro dia.

Vou logo avisando que para acompanhar a história é preciso ser bom da cuca ou então o leitor acabará se perdendo na mente confusa de Eulálio Assumpção. 

Em um leito de hospital, o velho aristocrata começa a reviver toda a história da sua tradicional família em um monólogo dirigido à filha, enfermeiras e a quem quisesse ouvir.

Desde cedo, Eulálio foi acostumado a viver em meio ao luxo e ao conforto proporcionado pelo seu pai, senador da Primeira República. A mãe dele era uma senhora racista e dava importância às questões sociais. Na adolescência, Eulálio conheceu Matilde, a mais mulata das filhas de um político carioca de prestígio, porém opositor ao partido da família Assumpção. Mesmo sem o apoio das famílias, ele e Matilde casaram-se e tiverem uma filha. Matilde era jovem e não gostava de convenções sociais. Gostava do maxixe, samba, seu francês era péssimo e mantinha uma relação amigável com os empregados. Comportamentos inapropriados, na visão do marido ciumento que, no fundo, também era racista, apesar de negar veementemente em seu monólogo.

O suspense fica por conta do sumiço de Matilde, que após dar a luz a pequena Eulália, acabou adoecendo, deixando o marido e a filha sozinhos. Eulálio aborda com insistência e de forma repetitiva a sua paixão pela mulher que nunca conseguiu tirar da memória, apesar da confusão mental que vivenciava ao completar seus 100 anos de vida.

Eulália cresceu um tanto amargurada pela ausência da mãe, casou-se com um empresário italiano que pôs a perder todos os imóveis da família dela. Os dois tiveram um filho, que também se chamava Eulálio, nome passado aos membros da família através das gerações. Eulálio ingressou em um partido comunista para lutar contra a ditadura militar e acabou sumindo no mundo, sendo dado como morto pouco tempo depois, mas deixou um herdeiro, que também recebeu o nome de Eulálio, como mandava a tradição. Esse Eulálio não tinha feições europeias como o pai, o avô e os seus antepassados. Era um menino negro metido a conquistador que acabou morto em um quarto de motel. Antes de morrer, esse Eulálio engravidou uma jovem de família rica, neta de uma das irmãs de Matilde. Assim que o bebê nasceu, foi deixado na porta do velho Eulálio Assumpção, que o criou como filho. Eulalinho costumava roubar as coisas do tataravô e sempre foi muito mimado pela bisavó, Eulália. 

Em meio a tantos Eulálios, mortes e reviravoltas na vida social, o narrador acaba misturando um pouco as histórias até que no final todas elas acabam fazendo sentido, proporcionando ao leitor a visão psicológica de seu protagonista. Trata-se um uma história fictícia, mas que agrega elementos da realidade. O caso da família Assumpção, sem dúvida, não deixa de ser verdadeiro. Pode não ter existido de fato um Eulálio Montenegro d'Assumpção, mas existiram muitas famílias como a dele, tradicionalmente ricas e que com o passar dos anos, e todas as mudanças na máquina brasileira, acabaram perdendo prestígio e dinheiro.

A obra é recomendada a todos aqueles que são verdadeiramente apaixonados por literatura. Chico Buarque soube usar cada palavra de forma sábia e primorosa, dosando os devaneios do velho senil com o que de fato aconteceu na sua vida. Toda a confusão mental de Eulálio, o seu psicológico perturbado e a proximidade da morte demonstraram uma narrativa forte e surpreendente.





Um comentário:

  1. Ótima resenha. Não conhecia o livro, tratarei de comprar o quanto antes. Gosto de ver artistas se aventurarem por áreas que não são as suas especialidades... e claro, no caso de Chico Buarque que recebeu várias críticas positivas, vale a pena conferir. Já está na minha lista. Parabéns pela postagem.

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